Entrevista: conheça o CaRINA, o carro brasileiro que se dirige sozinho

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CaRINA – totalmente desenvolvido no Brasil (Fonte da imagem: Reprodução/Google Plus)

Para você, “Carina” pode significar aquela lembrança toda especial da sua primeira namorada. Para mim, vale a recordação de uma professora que não gostava muito da bagunça que eu fazia dentro da sala de aula. Já para os pesquisadores da USP de São Carlos, no interior de São Paulo, o nome tem um significado bem mais útil para todos os brasileiros. Trata-se do CaRINA ou então Carro Robótico Inteligente para Navegação Autônoma.

O projeto se trata do desenvolvimento de um carro que pode se locomover sem a necessidade de um motorista o controlando. O automóvel, guiado por diversos recursos tecnológicos combinados, é capaz de aprender um caminho e seguir por ele até o seu destino final, fazendo isso de forma autônoma e inclusive detectando diferentes riscos e obstáculos que possam surgir pelo trajeto.

Conheça melhor o projeto

Os estudos com o CaRINA começaram em 2010, quando os pesquisadores do Laboratório de Robótica Móvel da USP/SC iniciaram os trabalhos com um carrinho de golfe. Pouco tempo depois, em outubro do mesmo ano, o veículo já era capaz de passar pelos seus primeiros testes de condução autônoma, algo que credenciou a equipe para realizar voos mais altos – como iniciar a implementação do sistema em um “carro de verdade”.

CaRINA 2 (Fonte da imagem: Reprodução/USP São Carlos)

Assim, a aquisição de um novo veículo, em julho de 2011, permitiu à equipe estudar o comportamento do CaRINA em situações mais complexas de trânsito urbano. E não demorou muito para que a equipe conseguisse também chegar a resultados satisfatórios com o automóvel. Em setembro de 2012, eles já conseguiram fazê-lo trafegar pelo campus da universidade sem ninguém o conduzindo.

Para mostrar que aqui no Brasil também existem projetos muito inteligentes no campo dos “carros autônomos”, nós entramos em contato com a equipe que trabalha no desenvolvimento do CaRINA – e um dos diretores do projeto, Denis F. Wolf, explicou em detalhes como tudo funciona. Confira!

Como nasceu o projeto CaRINA?

O nosso grupo já tinha grande experiência  na área de robótica móvel, mas até então os trabalhos eram realizados com robôs de pequeno porte. Nos últimos anos, a maior parte dos trabalhos com esses pequenos robôs foi migrando de ambientes internos para ambientes externos, e o uso de robôs de maior porte e mais rápidos foi uma evolução natural até chegarmos aos veículos.

Diversos ramos de atuação podem se beneficiar com o projeto (Fonte da imagem: Reprodução/USP São Carlos)

Além disso, existe uma demanda grande por parte de empresas agrícolas e de transporte para o desenvolvimento de máquinas inteligentes. Além do CaRINA 2, que é um veículo comercial, hoje nós também trabalhamos junto a uma grande empresa da área na automação de um caminhão de 9 toneladas e junto a empresas da área agrícola. No site, há algumas fotos e informações sobre esses projetos.

Os incentivos para o desenvolvimento do projeto partem da iniciativa privada ou o governo vem apoiando o CaRINA? Quantos alunos e professores participam do projeto?

O projeto CARINA recebe o financiamento do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Sistemas Embarcados Críticos (INCT-SEC) localizado no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP em São Carlos, e das agências de fomento CNPq e FAPESP.

Além disso, a partir dos resultados obtidos com esses projetos, nós temos conseguido parcerias importantes com empresas privadas no desenvolvimento de outros tipos de veículos inteligentes. Atualmente existem aproximadamente quatro professores e cerca de 15 alunos envolvidos nesses projetos.

Além de ir de um carrinho de golfe para um “veículo de verdade”, quais evoluções já puderam ser vistas do CaRINA 1 para o CaRINA 2?

Uma vez que o CaRINA 2 é um veículo comercial que deve andar nas ruas com outros veículos e pedestres, a responsabilidade no seu desenvolvimento é muito maior. Qualquer erro pode resultar em um grave acidente, o que obriga o grupo a desenvolver sistemas eficientes e robustos.

Além disso, o veículo opera em velocidades muito mais altas, o que demanda um tempo de resposta menor na tomada de decisão e nas ações do veículo. Ou seja, os programas que controlam o veículo devem ser mais eficientes e precisos.

Todos os sistemas de controle foram desenvolvidos por vocês? Como os softwares de gerenciamento do CaRINA funcionam? Qual o papel da inteligência artificial nesse projeto?

Diferente de outros grupos que têm aparecido recentemente na mídia, que importam carros automatizados prontos do exterior, todo o desenvolvimento do nosso veículo é realizado pelo nosso grupo. Hoje em dia é possível comprar carros robóticos já prontos, como os vendidos pela empresa Torc, por exemplo.

O problema é que, nesses casos, o país continua refém da tecnologia desenvolvida no exterior. Por esse motivo, nós preferimos desenvolver todos os aspectos do veículo. A única etapa que não é 100% desenvolvida pelo nosso grupo é a adaptação mecânica, pois nós não temos formação nessa área. Então nós trabalhamos junto com uma oficina mecânica que faz as instalações de maneira adequada, garantindo a segurança na operação do veículo.

A partir do conhecimento adquirido no desenvolvimento de todas as etapas do projeto, nosso grupo é capaz de portar essa tecnologia para outros veículos como caminhões e tratores, o que não é possível quando se compra essa tecnologia pronta do exterior. Existem outros grupos brasileiros, como a UFMG e a UNIFEI, que têm optado por essa metodologia de trabalho e têm conseguido excelentes resultados.

Como podemos explicar o funcionamento do CaRINA? Como os computadores utilizados no carro se comunicam e qual é o papel de cada um deles e das câmeras acopladas ao veículo?

Um veículo autônomo pode navegar no ambiente sem a necessidade de um motorista humano. Em geral, ele tem diversos recursos que não estão presentes nos veículos comerciais, como sensores, computadores, e outros sistemas eletrônicos. O sistema de controle da maior parte dos veículos autônomos é composto por três sistemas principais: percepção, processamento e atuação.

Detalhe das câmeras acopladas ao veículo (Fonte da imagem: Reprodução/Google Plus)

O sistema de percepção é composto por diversos sensores como câmeras, lasers, GPS etc. Eles são responsáveis por identificar obstáculos (pedestres, árvores e outros veículos), identificar a rua e as guias, identificar a sinalização de transito e estimar a localização do veículo em relação ao mapa das ruas de uma cidade.

Além dos sensores, são necessários programas de computador que interpretam os dados dos sensores para obter informações mais detalhadas sobre o ambiente. Por exemplo, um programa que receba uma imagem da câmera e identifique os pedestres que podem atravessar a rua na frente do veículo.

O sistema de processamento, é composto por um ou mais computadores que recebem as informações da percepção e tomam as decisões de acelerar, frear ou virar o volante. Esse sistema é o "cérebro" do veículo, agindo de acordo com as informações de percepção e das metas pré-estabelecidas (um local de destino, por exemplo).

Por fim, temos o sistema de atuação, que é composto por motores e circuitos eletrônicos, e programas que fazem o controle dos comandos do veículo virando o volante, acelerando e freando adequadamente para que o carro navegue de forma segura e eficiente.

Todos os componentes mecânicos originais do veículo foram mantidos, de modo que a segurança não foi comprometida. Na verdade, o sistema de atuação trabalha junto com a mecânica original do carro. No caso do volante, existe um motor acoplado magneticamente na barra de direção, de modo que o acoplamento desse motor é controlado pelo próprio computador embarcado.

Assim o programa de controle do CaRINA decide se quem vai virar o volante é o atuador (motor) ou o motorista. O freio é acionado por um atuador linear, ou seja, um motor que empurra um pistão que pisa no pedal de freio. Como ambos os motores ficam embaixo do painel, eles não são visíveis pelo motorista.

A aceleração é acionada por um circuito eletrônico, desenvolvido pelo nosso grupo. O computador também decide se a aceleração é eletrônica ou acionada pelo motorista humano. Como o câmbio é automatizado de fábrica, a troca de marchas é automática.

Painel do CaRINA 2 (Fonte da imagem: Reprodução/Google Plus)

Todos os sistemas descritos acima ficam embaixo do painel. Portanto, se o motorista não for avisado, ele nunca vai saber que está dirigindo um carro autônomo. As únicas modificações aparentes são alguns botões adicionados no painel e um monitor que fica de frente para o banco do passageiro.

Esse monitor mostra o planejamento de rotas do veículo, os obstáculos avistados etc. Existe um botão de emergência próximo ao câmbio do carro que desabilita todos os sistemas eletrônicos e passa o comando do veículo para o motorista em caso de emergência. Atualmente o carro usa dois computadores, um deles no porta-luvas e outro no porta-malas.

O computador do porta-luvas é bem pequeno e é usado para obter informações da rede interna do veículo, como velocidade, marcha e rotação do motor, e para acionar o esterçamento, aceleração e freio. O computador do porta-malas recebe informações dos sensores, processa e tomas as decisões da rota que será percorrida pelo carro.

Eles se comunicam através de uma rede interna no veículo. O CaRINA 2 conta com um sistema de alimentação dos computadores, atuadores e sensores que permite que tudo funcione apenas com a bateria original do carro, sem nenhuma modificação.

O sistema de reconhecimento infravermelho trabalha de forma semelhante ao Kinect (acessório para reconhecimento de movimentos da Microsoft)?

Nós utilizamos o Kinect em alguns trabalhos em ambientes internos, mas o sensor da Microsoft não funciona em ambientes externos com incidência da luz do sol. Além disso, a distância de percepção do Kinect é muito pequena para a operação de um veículo. Nele nós utilizamos diversos tipos de câmeras, como câmera estérea, câmera esférica e câmera térmica, que capta a temperatura dos corpos.

Ele só funciona por meio de satélites GPS? Existe algum projeto para utilizar o WiFi e fazê-lo se comunicar com outros softwares, como aproveitar a geolocalização dos smartphones?

Sim, por enquanto o veículo se localiza através de um GPS de alta precisão. No entanto, estamos trabalhando para obter localização precisa com sistema de baixo custo. Em relação à comunicação, nós estamos trabalhando em tecnologias baseadas em WiFi.

Lasers de monitoramento (Fonte da imagem: Reprodução/Google Plus)

Na verdade, existem diversos grupos de pesquisa, incluindo o nosso, trabalhando no desenvolvimento de sistemas que permitam que no futuro os veículos troquem informações com humanos (através de smartphones e tablets) e com outros veículos.

Desse modo, o trânsito poderia ser bastante otimizado, pois um veículo poderia informar aos outros em que velocidade seguirá seu caminho e quando fará uma curva ou quando precisará estacionar. Além disso, os veículos poderão saber que uma determinada rota está interrompida por um acidente, possibilitando que eles desviem seus caminhos.

Quais dificuldades o sistema ainda encontra quando está em funcionamento? Ele confunde terrenos ou deixa de identificar pequenos obstáculos, como cães ou buracos, por exemplo?

Por enquanto, o sistema é um protótipo em fase de desenvolvimento. Ainda é preciso melhorar muito o sistema de localização, planejamento de trajetória e percepção dos obstáculos. O desenvolvimento de programas precisos e eficientes leva tempo, mas está avançando. Hoje nós já conseguimos testar os veículos nas ruas em situações controladas, sem a presença de outros veículos. Em breve, pretendemos começar os testes em ambientes mais complexos e realistas.

O carro precisa “aprender” um caminho para depois segui-lo. A presença de elementos que antes não estavam ali, como veículos que precisem ser ultrapassados, ou outros obstáculos (como pessoas ou animais) atrapalha quando ele está se autoguiando?

O objetivo desse trabalho em particular é fazer com que o carro aprenda a dirigir observando um motorista humano. Obstáculos móveis e imprevisíveis deixam o problema bastante complexo. Lidar com esse tipo de situação continua sendo um grande desafio dessa linha de pesquisa.

Qual o futuro do CaRINA e qual é a agenda para a “evolução” do projeto? Podemos ver nos últimos vídeos postados por vocês que ele já consegue andar livremente pelo campus, mas testes em ruas reais e com obstáculos estão previstos? Ele poderá andar sem “conhecer o caminho”?

Nós pretendemos realizar testes em ambientes mais realistas a partir do segundo semestre. As funcionalidades do veículo são adicionadas de maneira incremental. Atualmente estamos trabalhando em algoritmos de planejamento de trajetória mais estáveis, permitindo que o veículo opere em maior velocidade com maior estabilidade.

Câmera térmica (Fonte da imagem: Reprodução/Google Plus)

Estamos também desenvolvendo programas para a identificação de pedestres de forma que a navegação se torne segura em ambientes urbanos com a presença de pessoas. Além disso, o sistema de controle básico do veículo está sempre sendo atualizado para garantir uma operação segura, minimizando o risco de falhas.

Existem vários projetos semelhantes no Brasil e ao redor do mundo. As instituições que desenvolvem esses trabalhos se comunicam? Há alguma troca de experiências nesse sentido?

Sim, há uma grande comunicação entre os grupos de pesquisa na área. No nosso caso, o nosso sistema de freio é baseado na experiência da UFMG, que trabalha nessa área há mais tempo do que nós. Nós também já repassamos muita informação sobre o nosso sistema de direção para outras universidades.

Além disso, alguns alunos de doutorado do nosso grupo estão atualmente na Alemanha e na Austrália, trabalhando em grupos de excelência na área. Esses alunos devem trazer uma experiência importante para o grupo quando retornarem ao Brasil.

Trocando experiências (Fonte da imagem: Reprodução/Google Plus)

Nós também estamos iniciando um projeto em conjunto com uma universidade americana, que já trabalha nesse tipo de projeto há mais de 10 anos. Essa experiência será fundamental para o nosso grupo.

Entre os projetos desse tipo, o carro da Google é provavelmente o mais famoso, por isso comparações são inevitáveis. Há semelhanças no funcionamento dos veículos?

A Google contratou alguns dos melhores pesquisadores de robótica do mundo para o desenvolvimento do seu veículo. Nós acompanhamos tudo o que é divulgado por eles e por outros grupos importantes na área.

Dinheiro da Google é um grande diferencial (Fonte da imagem: Reprodução/The Wall Street Journal)

Obviamente eles contam com uma experiência de muitos anos nessa área e de um orçamento muito maior do que o nosso, mas é fundamental sabermos o que esses grupos estão fazendo e como eles resolvem os problemas no desenvolvimento dos seus veículos.

Há certo consenso sobre o fato de que em um prazo de 10 anos esses tipos de carros serão “viáveis”, ou seja, já poderão ganhar as ruas. Você concorda? O que o senhor acha que mais precisa evoluir nesse sentido?

Acho que a tecnologia vai estar bem mais madura daqui a 10 ou 15 anos. Provavelmente nessa época, andar em um veículo autônomo seja tão seguro quanto dirigir um veículo convencional. Além do desenvolvimento tecnológico, a legislação precisa ser atualizada para permitir o uso comercial dessa tecnologia e definir as questões legais no caso de acidentes.

Espero que isso se resolva até lá. Além disso, não sabemos como será a aceitação desse tipo de veículo pelos consumidores. Acho que hoje as pessoas não estariam preparadas para dividir o trânsito com um carro autônomo. Novidades desse tipo levam algum tempo para serem assimiladas pela sociedade.

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